A legalização do aborto na Argentina: uma perspectiva comparada

Profissão RelGov
8 min readFeb 9, 2021

Por Maria Gamberra e Isadora Grossi, do *Laboratório de Análise Internacional "Bertha Lutz"

É lei. No dia 30 de dezembro de 2020, o Senado argentino aprovou um projeto que permite o acesso livre e gratuito ao aborto até a 14ª semana de gestação. Tendo sido aprovado com 131 votos favoráveis e 117 contrários na Câmara dos Deputados, e 39 favoráveis e 29 contrários no Senado, o projeto fez da Argentina um dos poucos países da América Latina que legalizam o aborto. A maré verde — a cor do símbolo feminista no país — não deixou de exercer pressão nos parlamentares, mesmo ao longo dos meses de pandemia, e, assim, conseguiu derrubar a lei que vigorava desde 1921 e que permitia a interrupção da gravidez apenas em caso de estupro ou de risco à vida da mãe.

Em 2018, a mesma maré verde conseguiu que o projeto fosse aprovado na Câmara dos Deputados, mas não no Senado. Os tempos atuais, porém, são outros. Apesar da Argentina ser um país católico — o Papa Francisco é, inclusive, nativo do país — e evangélico, o atual governo de Alberto Fernández apoiou a legalização, o que facilitou a aprovação no Senado, mesmo que esse fosse mais conservador e incerto. Embora a interrupção da gravidez em qualquer caso, até a 14ª semana de gestação, tenha sido legalizada apenas em 2020, o país já era um lugares com maior incidência de aborto. A criminalização não impedia que as mulheres que desejavam escolher quando, como e se queriam ser mães abortassem: cerca de 50.000 mulheres argentinas são hospitalizadas por ano devido a complicações decorrentes de abortos inseguros e clandestinos.

Essa foi a nona vez que um projeto como esse chegou ao Congresso argentino, evidenciando, assim, a longa luta das argentinas pelo direito a um aborto seguro. Desde os anos 1970, o movimento feminista no país tinha essa como uma de suas principais reivindicações; por volta de 1973, um dos folhetos circulados pela União Feminista Argentina (UFA) já proclamava: “A gravidez não desejada é um modo de escravidão / Chega de abortos clandestinos / Pela legalidade do aborto / Feminismo em marcha” (“El embarazo no deseado es un modo de esclavitud / Basta de abortos clandestinos / Por la legalidad del aborto / Feminismo en marcha”). Já em 1984, durante a primeira comemoração de rua do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, um folheto manuscrito também dizia “Não queremos abortar. Não queremos morrer de aborto” (“No queremos abortar. No queremos morir de aborto”). Foi então, em 1992, que o primeiro projeto de lei sobre contraceptivos e aborto foi apresentado ao Congresso argentino, pela Comissão pelo Direito ao Aborto, que, além de versar sobre o direito ao acesso a contraceptivos e à educação sexual, reconhecia também o direito de toda mulher de interromper a gravidez antes da 12ª semana de gestação.

Foi assim que Fernández encerrou seu primeiro ano como presidente da Argentina. Apesar do ano conturbado e da grave crise econômica em que o país ainda se encontra — com índices de pobreza acima de 44% e moeda desvalorizada — , o presidente peronista ainda apresenta um índice de aprovação relativamente alto, de 50%. De fato, a pandemia do coronavírus frustrou muitas de suas expectativas, mas, sob o governo de Fernández, a Argentina não só foi capaz de finalmente aprovar um projeto legalizando o aborto, como também reestruturar a dívida privada e iniciar a vacinação de seus habitantes com a chamada “vacina russa”, a Sputinik V. O país foi o terceiro a aprovar essa vacina e o segundo da América do Sul a iniciar a imunização, depois do Chile.

Assim, com a recente legalização do aborto, a Argentina se junta à curta lista de países da América Latina que permitem o acesso livre e legal ao aborto nas primeiras semanas de gestação. Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Porto Rico — mais o estado mexicano de Oaka e a Cidade do México — compõem o restante da lista, evidenciando a escassa e delimitada liberdade que a mulher latino-americana possui sobre seu corpo. Nos países citados, é colocado um limite entre 12 e 14 semanas para a realização do aborto, sendo possível praticá-lo mais para a frente na gestação dependendo da situação do feto, da mãe e do que ocasionou a gravidez.

Concomitantemente, existe quase a mesma quantidade de países que proíbe, sem exceções, a interrupção voluntária da gravidez. As mulheres de El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e República Dominicana não dispõem de permissão nem ajuda para realizar um aborto, mesmo que a busca por esse decorra de estupro, risco à vida da mãe ou má-formação do feto. Essa proibição legal não consegue, contudo, conter o número de abortos clandestinos: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um a cada quatro abortos na América Latina são feitos sem a segurança necessária. A clandestinidade do processo não apenas coloca em risco de prisão quem decide praticá-lo, como também ameaça sua saúde. Esse aspecto há de ser levado em conta principalmente pensando na população feminina mais vulnerável, a qual a falta de regulamentação e clandestinidade dos processos podem afetar em maior magnitude — principalmente devido à escassez de recursos financeiros dessa parcela.

Essa situação se deve, também, ao fato do restante dos países ainda não citados terem uma legislação que se encontra, na maioria dos casos, mais próxima da criminalização do que da descriminalização do aborto. Países como Venezuela, Paraguai, Colômbia, Bolívia, e Chile permitem o aborto apenas em situações específicas. Nos primeiros dois citados, é permitido interromper a gravidez apenas se houver comprovação de que a mãe corre perigo de vida; já nos outros quatro, a malformação do feto e a gravidez decorrente de estupro ou incesto também são situações em que o aborto é permitido. É necessário evidenciar que, na maioria desses países, não se encontra planejamento jurídico ou de saúde estruturado para atender os casos permitidos. Dessa maneira, a falta de concretude logística e de infraestrutura — pois nessa parcela de países os hospitais que fazem os processos são poucos e mal distribuídos — é um fator que aumenta a precariedade da situação do aborto na América Latina como um todo, cujos atrasos quanto à liberdade da mulher e seu próprio corpo se tornam cada vez mais marcantes.

Nesse contexto, o Brasil se encaixa no grupo de países cujas legislações se aproximam maiormente à criminalização do aborto, possibilitando a prática da interrupção da gravidez apenas em caso de estupro, malformação do feto ou risco à vida da mãe. Ao mesmo tempo, as fortes pressões que ocorrem por grupos conservadores da sociedade, infladas desde a ascensão do atual presidente, Jair Bolsonaro, em 2018, são um obstáculo que se soma à dificuldade das mulheres que, mesmo estando entre as exceções concebidas, encontram impasses devido à falta de infraestrutura e planejamento do governo. O caso dos protestos conservadores contra o aborto da criança de dez anos estuprada e engravidada pelo tio em agosto de 2020 é apenas um exemplo do peso que o país ainda coloca na mulher — ou criança, nesse caso — que busca apenas o direito à escolha.

Dessa maneira, observando a América Latina e suas atuais legislações quanto ao aborto, se torna evidente como a legalização, disponibilização e regulamentação da prática abortiva na Argentina é um marco importantíssimo para a mulher latina. Esse avanço na direção aos direitos sociais da mulher — em um dos países cujas leis sobre o tema eram as mais rígidas — é resultado de uma luta feminista que persiste há décadas, cujo sucesso há de servir de exemplo e motivação para as mulheres dos países que ainda não concedem essa liberdade. Da mesma forma, o sucesso do movimento feminista argentino precisa ser encarado pelos governos dos países adjacentes como uma demanda generalizada pela melhoria dos direitos da mulher. Revisitar as legislações quanto ao tema do aborto não é apenas uma sugestão e, sim, uma necessidade coletiva e uma questão de saúde pública.

REFERÊNCIAS

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TARDUCCI, Mónica. Escenas claves de la lucha por el derecho al aborto en Argentina. Salud colectiva, v. 14, p. 425–432, 2018.

*O Laboratório de Análise Internacional ‘Bertha Lutz’ da Universidade de São Paulo (LAI-USP) foi inicialmente criado por alunos do curso de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo com o objetivo de estimular as atividades de graduação do curso de Relações Internacionais. Atuando em várias frentes, sendo definido como uma instituição de extensão universitária cujas atividades incluem pesquisa, capacitação educacional e produção de eventos acadêmicos nos campos das relações internacionais e da ciência política. Nesse sentido, objetivamos retornar à sociedade o investimento que recebemos na universidade pública, bem como fornecer aos alunos da USP, e, em especial, do Instituto de Relações Internacionais (IRI), um espaço para aperfeiçoamento acadêmico.

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